segunda-feira, 15 de setembro de 2008

sem título (por enquanto)

Houve um tempo em que a espera era exata. A gente fazia planos e eles aconteciam. Sonhar não era tão difícil e tinha sentido. Nem tudo era tão imprevisto, nem tudo era frustração. E foi nesta época que te conheci. Lembro-me ainda do dia em que te vi pela primeira vez. Eu como sempre naquela época, toda "certinha" com permanente nos cabelos. Vestia seda e um rebuscado vocabulário (com o tempo torna-se mais simples).
Você datilografando para os patrões e, eu lendo, se não me engano era Goethe, e esperando para mais uma entrevista de trabalho. Eu séria e você sorrindo. Tentando burlar meu nervosismo.
Por várias vezes nos olhamos de soslaio até eu perceber: lá está minha cúmplice. Até que a porta se abriu e meu nome foi chamado, levantei-me e com muita discrição respondeu-me com o polegar em riste e uma piscadela. Sorri em resposta. Foi a hora mais longa de minha vida. Eu sentada e outra pessoa me questionando, analisando meu currículum fazendo anotações que nunca fiquei sabendo o quê.
Pigarros à parte, cigarros na mão e meu entrevistador num tom quase inaudível me diz:
- começa amanhã. Esteja aqui às 14 horas em ponto. Venha. Vou te apresentar para o seu novo chefe. Não podia acreditar. Como não podia imaginar que este "amanhã" seria o começo daquilo que mudaria toda a minha vida. Não a vida profissional mas a emocional. Era a roda do destino girando.
No outro dia lá estava eu às 13h45. Continuava tensa e você amável. Trazia comigo mais um livro e você comentou: - também gosto de ler. Estou lendo Carta ao Pai de Kafka, mas estou percebendo você está com outro livro o de ontem era de capa vermelha o de hoje é marrom...
- Ontem terminei de ler Cartas do Jovem Werther, Goethe. Hoje comecei A Paixão Segundo GH, Clarice Lispector é marrom porque tive que mandar encadernar. Aconteceu um acidente com ele.
- Acidentes acontecem disse rindo para mim, também gosto desses autores já leu Fausto?
-sim...
- Não acha que Faustos e Margaridas existem em todos os lugares? achei estranha aquela pergunta foi quando percebi que estava falando com uma pessoa mais velha do que eu. Senti um leva tocar de mão em meu ombro: -Já chegou? ótimo!, disse meu novo chefe, - venha por aqui.
- Olha, boa sorte para ti. Ainda nos veremos e espero que por muito tempo, disse profeticamente ou não você.
Meu primeiro dia de trabalho não foi cansativo, pelo contrário, meus novos colegas fizeram de tudo para que me sentisse bem. Bati meu ponto e caminhei ao ponto de ônibus. Já estava escuro. De súbito uma voz familiar me assusta:
- o que acha da frustração de Kafka com seu pai?
Virei-me e em minhas costas estava você, sorrindo para mim:
- Acha Kafka difícil? prosseguiu. - Acho interessante O Processo, já leu? Ainda surpresa respondi que sim apenas com um sinal de cabeça. E foi pela primeira vez que notei o quanto você irradiava luz que, de repente, me incendiou.
- Coisa louca - continuou rindo - uma pessoa ter de provar que não cometeu nenhum crime, e mesmo inocente ser condenado...
A única coisa que conseguia fazer era balbuciar palavras que nem me lembro e acredito que você também não. Sua luz tomou conta de todo o lugar e por coincidência não havia mais ninguém no ponto além de nos duas mas, sinceramente, se havia não consegui enxergar.
Foi quando você me fez o convite: - já que irá conviver conosco deixe que lhe pague algumas cervejas no bar que todos freqüentamos. Vamos lá? não se preocupe, se ficar muito tarde te levo de táxi, e por favor, não diga não. Você é minha convidada.
O bar era um botequim de copo sujo. Pela receptividade percebi que você era uma pessoa muito popular no lugar, inclusive entre os mais humildes. Conseguiu, com maestria jogar sinuca, discutir política e literatura com todos com um vocabulário simples e claro. E, também falar de mulheres com peões que te ouviam com a maior atenção. Lembro-me como hoje, do catador de papel que reclamou da esposa com você e você em uma gargalhada disse-lhe, com as mãos em seu ombro: - Amigo, você vacilou mas tome. Dando-lhe dinheiro - vá até uma floricultura e compre uma dúzia de rosas, chegue em casa com as flores mas, não se esqueça da comida. Passe um uma pizzaria ou sei lá, churrascaria. Compre o que ela gosta sem esquecer a sobremesa. E diga que hoje você trabalhou o dobro para pedir-lhe perdão. Amanhã você me diz. Vá. Mas não se esqueça de pedir perdão de verdade. Você gosta mesmo dela? Se gosta, meus amigo, trate-a bem. Mas não se assuste, ela vai gritar com você e dizer que gastou dinheiro em coisas supérfluas, há o aluguel etc, etc, etc...Mas no fundo ela vai adorar. Vá, não perca tempo.
Interrompi- isto é Maquiavel...
- Sim, aplicado ao amor minha cara. Disse-me sorrindo. - de que adianta ler se não ajudamos a essas pessoas? eles são a própria literatura. Só não o sabem. E ,é aí que entramos, guiando-lhes. Seu sorriso me fez arrepiar e levantar uma dúvida: despótica? quem sabe? até hoje me pergunto.
Sei apenas que você crescia, crescia e muito em mim. Quase pedi demissão. Mas que nada. Minha curiosidade era a de um gato filhote: grande. E perigos existem em todos os lugares. Compreendi o quanto era criança e você...Qual o final? todos os dias entrava no trabalho extasiada querendo ver-te. Nos víamos apenas na hora do almoço no refeitório. Por muito tempo foi assim. Eu não tinha tempo de ir ao bar por causa da Universidade. Mas no refeitório você emanava conhecimento e simplicidade. E ao invés de comer eu me paralisava.
Até que um dia ficamos as duas nos olhando apenas. Você sóbria e, eu, embriagada com o que me dava a sua presença. Sabíamos o que estava por acontecer. Intuitivamente, sabíamos. Deliciosamente, sabíamos. Aceitávamos o por vir. E nos entregamos, e, entregávamo-nos. De que vale o conhecimento sem o empírico, sem o real? O amor tem sexo, cor e idade? A vontade de estar junto, embora sabendo do vácuo que é a vida. Não sabíamos o quanto nos queríamos. Além do abraço, além do contato, além do beijo, queríamos nossos cérebros e seus cerebelos a pulularem: além de nossos sexos, além de nosso espírito entendíamos a morte - amo-te, amo-te, amo-te. Quero-te! e nos queríamos, queríamos e queríamos. Foi quando mordi sua vulva e você minha língua. O degustar, o deglutir. O discutir e o esvaziar. Esvaziamo-nos e percorremos todos os atalhos para nos perdermos e acharmo-nos.
Aqui estou, sem planos exuberantes em frente de ti querendo apenas aquela época em que podíamos fazer planos exatos, conhecermo-nos sem medo e amar na espera do tempo sem planos e bússolas e poder sonhar. Devolva-me meus sonhos? ou você.

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A cada dia se reforça o discurso e a necessidade da Reciclagem de Materiais, eu respeito. Mas o que mais me atrai é poder dar forma e vida a objetos que estariam fadados às cinzas e a destruição: Reutilizar, Refazer. Respeito ao ambiente, às gerações futuras e aos próprios objetos. Somos uma totalidade. Não há como separar, o conhecimento popular, a arte a cultura, a história. O que nos une é a busca.